sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Dilemas de fraseador


por Josemir Medeiros

O poeta mato-grossense Manoel de Barros revela em suas memórias inventadas que, aos 13 anos de idade, contou aos seus pais que não queria ser doutor, queria ser fraseador. Seu irmão, conta-nos o poeta, num rompante de sensatez fez a pergunta que não queria calar: “Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa?”. Na ausência de uma resposta convincente, decretou: “Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino para ele deixar de variar”.

         Se a enxada foi ou não para as mãos do menino que queria ser fraseador, melhor deixar que o leitor procure a resposta a essa pergunta visitando a obra desse menino que “gostava de carregar água na peneira”. Mas a pergunta formulada pelo irmão do poeta alimenta a coleção dos dilemas de tantos fraseadores amadores, profissionais, novos e velhos, famosos ou anônimos.

         Ao receber o convite para encadear frases nesse blog da minha querida amiga Andréia Porto, eu, atrevidamente julgando-me fraseador, evidentemente bem longe do talento do inspirador poeta pantaneiro, também me vi diante de um dilema básico de fraseador, escrever sobre o que? E, ao mesmo tempo, vi aflorarem das minhas memórias tantos ouros dilemas que constituem e forjaram esse humilde fraseador.

         “Lutar com palavras é luta mais vã, no entanto luto, mal rompe a manhã”, já dizia o itabirano fraseador Drummond. Luta vã como a absurda mania daquele menino que cismava de carregar água na peneira. Luta que, no entanto, se renova a cada manhã e que, apesar de tantas novas tecnologias, ainda resiste incorporando-se a quantas plataformas, multi, trans, poli mídias existam ou venham a ser criadas.

Cecília Meirelles, outra fraseadora mergulhada no lirismo, poetiza: “Ai palavras, ai palavras, que estranha potência a vossa” e o fraseador bem sabe que é preciso compreender a potência dessas palavras, dispor-se à luta diária, ainda que seja vã e entregar-se à tarefa de carregar água na peneira com tudo que esse ofício traz de belo e insano.
         É preciso seguir os conselhos de Pessoa, o fraseador português, para entender que assim como viver não é preciso, no sentido da exatidão, frasear também não pode ser e que o poeta, ou qualquer outro fraseador, necessita tornar-se um fingidor capaz do prodígio de fingir tão completamente, a ponto de fingir que é dor, a dor que deveras sinta, ou que possa atrever-se como Manoel de Barros e, linda e liricamente, entenda que é preciso apenas “saber errar bem o seu idioma”.

         E é nessa incompreensível, imprecisa, insana e interminável labuta que reside o maior, se não o definitivo dilema do fraseador. Como se entregar a esse trabalho que parece tão inútil enxergando nele toda a utilidade do mundo? Como se dedicar a tarefa tão inglória, reconhecendo nela a maior das glórias possíveis? Como passar incólume e leve por aqueles que só conseguem ver a insanidade de um ofício que lhes pareça tão sem sentido.

         Como dizer não à enxada, escolher a peneira e com ela carregar água? Ou ainda, como conciliar a enxada do feijão e a peneira do sonho? Como atrever-se a frasear num mundo em que é preciso, antes de tudo, pôr mantimentos em casa?    

         Talvez não existam respostas para essas perguntas e muito provavelmente nem mesmo os dilemas de fraseador sejam reais ou perceptíveis. Quem sabe tudo isso não é apenas mais um pretexto para frasear ou quem sabe não é uma provocação para que você aí que me lê se anime a frasear de volta.


         Então, que tal? A água está aí, basta pegar a peneira.

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